sexta-feira, 23 de março de 2012

Sentença inusitada: a culpa é da lagartixa

Por migalhas n. 2.840.

"A culpa foi da lagartixa", sentencia juiz
"Uma lagartixa tem todo o direito de circular pelas paredes externas das casas à cata de mosquitos e outros pequenos insetos que constituem sua dieta alimentar". Com essas palavras o juiz de Direito Helio David Vieira Figueira dos Santos, do JEC de Florianópolis/SC, condenou a K. I. Ltda. a ressarcir um consumidor que teve o motor de seu ar condicionado queimado quando uma lagartixa entrou no aparelho.
Além de determinar o pagamento de R$ 664,00 ao autor da ação pelo fato de a empresa ter se recusado a dar a cobertura de garantia do eletrodoméstico, o juiz lamentou a morte do animal: "como ia ele saber se não havia barreira ou proteção que o fizesse refletir com seu pequeno cérebro se não seria melhor procurar refúgio em outra toca".
O magistrado também ponderou sobre a necessidade de o homem sempre colocar a culpa em alguém. "É, portanto, indiscutido nos autos que a culpa foi da lagartixa, afinal, sempre se há de encontrar um culpado e no caso destes autos, até fotografado foi o cadáver mutilado do réptil que enfiou-se onde não devia".
Veja a íntegra da decisão.
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Autos n° 082.11.000694-3
Ação: Procedimento do Juizado Especial Cível/Juizado Especial Cível
Autor: A.C.
Réu: K. I. Ltda.
Vistos, etc.
Trata-se de ação que dispensa a produção de outras provas, razão pela qual conheço diretamente do pedido.
A preliminar de complexidade da causa pela necessidade de perícia deve ser afastada, porquanto a matéria é singela e dispensa qualquer outra providência instrutória, como dito.
Gira a lide em torno de um acidente que vitimou uma lagartixa, que inadvertidamente entrou no compartimento do motor de um aparelho de ar condicionado tipo split e que causou a sua morte, infelizmente irrelevante neste mundo de homens, e a queima do motor do equipamento, que foi reparado pelo autor ao custo de R$ 664,00 (fl. 21), depois que a ré recusou-se a dar a cobertura de garantia.
É, portanto, indiscutido nos autos que a culpa foi da lagartixa, afinal, sempre se há de encontrar um culpado e no caso destes autos, até fotografado foi o cadáver mutilado do réptil que enfiou-se onde não devia (fl. 62), mas afinal, como ia ele saber se não havia barreira ou proteção que o fizesse refletir com seu pequeno cérebro se não seria melhor procurar refúgio em outra toca- Eis aqui o cerne da questão, pois afinal uma lagartixa tem todo o direito de circular pelas paredes externas das casas à cata de mosquitos e outros pequenos insetos que constituem sua dieta alimentar. Todo mundo sabe disso e certamente também os engenheiros que projetam esses motores, que sabidamente se instalam do lado de fora da residência, área que legitimamente pertence às lagartixas. Neste particular, tem toda a razão o autor, se a ré não se preocupou em lacrar o motor externo do split, agiu com evidente culpa, pois era só o que faltava exigir que o autor ficasse caçando lagartixas pelas paredes de fora ao invés de se refrescar no interior de sua casa.
Por outro lado, falar o autor em dano moral é um exagero, somente se foi pela morte da lagartixa, do que certamente não se trata. Houve um debate acerca da questão e das condições da garantia, que não previam os danos causados por esses matadores de mosquitos. Além disso, o autor reparou o equipamento, tanto que pretende o ressarcimento do valor pago, no que tem razão. E é só. Além disso, é terreno de locupletamento ilícito à custa de outrem.
Diante do exposto, julgo parcialmente procedente a ação, para condenar a ré a ressarcir o autor da quantia de R$ 664,00 (seiscentos e sessenta e quatro reais), a ser acrescida de juros de mora de 1% desde a citação e correção monetária pelo INPC, desde o desembolso (fl. 62).
Sem custas e sem honorários.
P. R. I.
Florianópolis (SC), 22 de fevereiro de 2012.

Helio David Vieira Figueira dos Santos
Juiz de Direito

Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI152348,31047-A+culpa+foi+da+lagartixa++sentencia+juiz

Reforma do CP: prescrição, tratamento ambulatorial, crimes omissivos entre outros


Por René Ariel Dotti
A reforma do Código Penal e a opinião do IAB
Propostas para a Parte Geral (III)
(1) A necessidade de um trabalho compartilhado
No dia 2 de março, a Subcomissão de especialistas que prepara um Anteprojeto da Parte Geral do Código Penal1 reuniu-se, em audiência pública, com os membros da Diretoria e associados do INSTITUTO DOS ADVOGADOS BRASILEIROS, na cidade do Rio de Janeiro. O objetivo foi o de apresentar algumas propostas já redigidas em fase inicial e caráter provisório e ouvir as críticas e sugestões da entidade que tem sido destacada nacionalmente pela dinâmica gestão de Fernando Fragoso e demais diretores. A Subcomissão, aliás, tomou a iniciativa do encontro muito mais para ouvir do que para falar.
(2) O projeto de lei 7.987/2010, da Câmara dos Deputados
Um exemplo notável da contribuição do IAB ao cenário jurídico nacional foi a redação de um Anteprojeto de Código de Processo Penal2, já encaminhado à Câmara dos Deputados3, além do disegno di legge nº 156/2009, do Senado Federal, aprovado em sessão de 10 de dezembro de 2010. A afinidade de várias disposições desse anteprojeto com os trabalhos da Subcomissão do Senado que cuida da Parte Geral do CP pode ser observada pelo art. 630: "O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a vigorar com as seguintes modificações e acréscimos: 'Art. 97. ... § 1º A internação, ou tratamento ambulatorial, perdurará enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a recuperação do inimputável, não podendo, entretanto, superar o tempo previsto para a pena cominada. Art. 117. O curso da prescrição interrompe-se: I- pela propositura da ação penal, desde que recebida a denúncia".
(3) A recepção das proposições do IAB
Ambas as proposições são extremamente relevantes. A primeira delas elimina a hipótese do internamento perpétuo atualmente em vigor4 e que desloca para outro setor do Estado, de natureza protetora e assistencialista de área médica-psiquiátrica e psicológica quando ainda persistir o estado de periculosidade, depois de consumado o tempo da pena cominada.
A desgraçada condição de seres humanos que precisam ser confinados para neutralizar o estado perigoso é um dos desafios para a eficácia do III fundamento da República: "a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico se destina aos inimputáveis e semi-imputáveis referidos no art. 26 e seu parágrafo único do CP (LEP, art. 99).
A propósito das deficiências crônicas desse tipo de estabelecimento, já acentuei que "a história e a prática dos manicômios judiciários deve ser imediatamente revista a fim de que as construções de tais estabelecimentos e a formação de todo o pessoal administrativo, dos médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos e outras categorias de servidores não se mantenham como o cortejo de fantasmagorias que constitui a sombra de tais centros de maldição" (Bases e alternativas, p. 274).5
Penso que o texto do Anteprojeto da Parte Geral do CP deverá aprovar essa contribuição que será por mim apresentada oportunamente. Afinal, é preciso abrir fendas na paliçada dos "manicômios judiciários" – como eram designados esses estabelecimentos para medida detentiva na redação original do Código Penal (art. 88. (...) § 1º, I). Afinal, o ideário e a prática da Lei nº 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, não podem ser ignoradas no momento de revisão do sistema positivo.
Também a proposição da regra segundo a qual o curso da prescrição é interrompido pela propositura da ação penal, desde que recebida a denúncia, vem suprir notória incongruência porque o impulso da reação estatal fica (ainda) na dependência do Juiz quando o seu legítimo agente é o Ministério Público.
(4) Algumas considerações críticas
Lido e sustentado pelo professor Carlos Eduardo Machado, o relatório do IAB contém algumas passagens de crítica, outras de apoio e algumas propostas novas. Entre as propostas da Subcomissão6, foram objeto de crítica: (a) prescrição pela faixa etária: não se justificaria a eliminação do prazo prescricional à metade em favor dos menores de 21 (vinte e um) anos e o aumento do limite de idade de 70 (setenta) para 75 (setenta e cinco) anos7; (b) os benefícios da execução da pena de prisão devem ser considerados em função da pena unificada no total de 30 (trinta anos), ao contrário do que dispõe a Súmula STF, nº 715. O relatório cita precedente do TJRJ no HC nº 2008.059.02057, da 5ª C. Crim, rel. Des. Geraldo Prado. A ordem foi concedida no sentido de que o limite previsto pelo art. 75 do CP é considerado para efeito de progressão do regime; c) os prazos de cumprimento da pena para a progressão do regime e o livramento condicional, atualmente fixados em 1/6 (um sexto) e mais de 1/3 (um terço) se for primário (LEP, art. 112 e CP, art. 83, I). O argumento central alude que "dados recentes do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) com o Código vigente, apenas nos anos de 1990 a 2011 o número de presos no Brasil saltou de 90.000 para 513.802 detentos, um aumento de 471% em pouco mais de 20 anos. Hoje, o Brasil, em números absolutos, só possui menos detentos que a China e os Estados Unidos". (Grifos meus)
(5) Algumas disposições aprovadas
(5.1) A proposta da restauração dos §§ 1º e 2º do art. 110, introduzidos pela Lei nº 7.209/1984 e revogados pela Lei nº 12.234/2010, é fruto de um populismo induzido pela superstição de que o réu deve ser responsabilizado pela demora do processo. Esse deplorável exemplo de uma Política Criminal enganosa foi criticado pelo autor deste artigo na condição de relator das propostas oriundas da Subcomissão e das que estão sendo apresentadas.
(5.2.) Outro ponto aprovado pelo IAB foi a retirada, do art. 59 do Código Penal, dos indicadores de "personalidade" e "antecedentes", com oportunos e bem fundados argumentos.
(6) Algumas propostas novas
(6.1) O Relatório IAB propõe a inserção de um preâmbulo à Parte Geral com a declaração de cumprimento obrigatório de princípios fundamentos de garantia do magistério punitivo. Vale transcrever: "Cunhados pelo ideário iluminista, constituem os princípios penais verdadeiros balizadores da atividade estatal que objetivam primordialmente a contenção do poder punitivo; observando-se um caráter político-criminal e a função de garantia, os princípios agem como verdadeiro limite ao legislador em sua atividade de construir (e reformar) tipos penais". (Grifos meus)
(6.2) Penso que há determinados princípios, a exemplo da legalidade estrita, ofensividade , subsidiariedade, co-culpabilidade, insignificância (com a exclusão da tipicidade), que podem e devem vincular não somente o legislador, como também o Ministério Público (função seletiva) e a Magistratura (missão protetiva).
(6.3) Para os crimes omissivos impróprios, a Comissão de Direito Penal do IAB apresenta três sugestões para ajustar o dever do garantidor ao princípio da legalidade: (a) previsão, como parágrafo ao art. 13, que além dos critérios formais do § 2º, deve haver, cumulativamente, "clara equivalência axiológica, no caso concreto entre a ação e a omissão, tal como prevê o CP alemão (§ 13, 2, StGB); (b) previsão, na Parte Geral de que "nos casos específica e expressamente indicados por lei é que infrações penais podem ser cometidas por omissão (seja como art. 13, § 5º, seja como um novo parágrafo 2º, renumerando-se o atual art. 13, § 2º, CP e a concomitante previsão expressa na Parte Especial, dos crimes específicos em que a punição por omissão, por equivalência à ação, é juridicamente admissível; e (c) "previsão de uma atenuante genérica, como alínea do art. 65, CP) ou de uma causa de diminuição (como art. 13, § 4º), ao menos facultativa, no caso de crime omissivo impróprio" (Grifos meus).
(6.4) O criminalista Rodrigo Fragoso sustenta relevante proposta no sentido da individualização das formas da participação punível. Ele sugere que o art. 29 do Código Penal passe a distinguir, como faz o Código alemão, entre as figuras do autor (coautor), instigador e cúmplice, conceituando-as e prevendo para estes dois últimos uma redução obrigatória da pena. E lembra que, há trinta anos, Nilo Batista em sua obra Concurso de agentes9, "já alertava sobre a importância de desenvolver a matéria do concurso de agentes, de modo a conduzir à obrigatoriedade de ser fixada na sentença condenatória, à luz dos princípios de igualdade e da individualização da pena, o 'título' da responsabilização: autoria direta, co-autoria, autoria mediata, instigação ou cúmplice”. (Grifos meus).
(6.5) Outras valiosas sugestões foram indicadas: (a) abolição dos crimes de perigo abstrato; (b) ressarcimento do dano como causa de extinção da punibilidade nos crimes patrimoniais10; (c) celebração de acordos extrajudiciais (TAC)11 com autarquias como causa extintiva de punibilidade quando houver intervenção do Ministério Público; (d) inclusão, na Parte Geral do Código Penal, de disposição limitando a elaboração de normas incriminadoras nas hipóteses em que o complemento normativo seja oriundo de uma lei no sentido formal, com o devido procedimento constitucional (CF, art. 59 e s.) e não de uma autoridade administrativa, como ocorre com o art. 28 da Lei nº 11.343/2006 (drogas).
(7) A restauração da prescrição pela pena concretizada, contando-se o prazo a partir do fato
Uma das propostas do IAB (que já havia sido defendida por mim na Subcomissão) é a da restauração da prescrição retroativa contado o prazo antes do recebimento da denúncia, assim como constava no § 2º do art. 110, que foi revogado pela Lei nº 12.234/2010.
O mestre Tourinho Filho, em certeiras observações enviadas ao ministro Gilson Dipp e repassadas para a Subcomissão, deplora a malsinada lei afrontosa da letra e do espírito da Constituição Federal, que declara, entre os direitos e as garantias individuais, o generoso princípio "em favor de todos" da razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação" (art. 5º, LXXVIII). Entre seus irrespondíveis argumentos, destaca-se o seguinte: como é possível negar a existência de um prazo prescricional em curso se a denúncia recebida interrompe a prescrição (CP, art. 117)? Aliás, reza o art. 111 que a prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: "I - do dia em que o crime se consumou". A "filosofia" da Lei nº 12.234/2010 enganosamente debita a demora do processo aos recursos e à procrastinação de advogados, porém, isenta de responsabilidade o juiz tardinheiro e indiferente à sua missão de garantia social quando defere pedidos e diligências com o evidente interesse procrastinatório da decisão de mérito. Eu tenho constatado isso em muitas causas em que o nosso Escritório atua na defesa de vítimas. Em síntese: a maior crítica feita a esta lei resulta de sua orientação genética. Ela foi, certamente, inspirada na proposta do Grupo de Trabalho criado ao tempo do Ministro Alfredo Buzaid que elaborou o projeto da Lei nº 6.416, de 24 de maio de 1977, substituindo o parágrafo único do art. 110, da redação original do Código Penal, por dois outros. O § 2º estabelecia: "A prescrição, de que trata o parágrafo anterior, importa, tão-somente, em renúncia do Estado à pretensão executória da pena principal, não podendo, em qualquer hipótese, ter por termo inicial data anterior à do recebimento da denúncia".
No entanto, e durante o próprio regime autoritário, os ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, "usando das atribuições que lhes conferia o art. 3º do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o § 1º do art. 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968", promulgaram a Lei nº 6.016, de 31/12/1973. Este diploma eliminou a vedação de contar o prazo anterior à denúncia e restaurou a eficácia da Súmula STF nº 146, com a seguinte redação: "Art. 110. (...) § 1º. A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação, regula-se também pela pena imposta e verifica-se nos mesmos prazos". E o § 2º do mesmo diploma dispunha sobre o termo inicial da prescrição, verbis: "A prescrição da ação penal começa a correr: a) do dia em que o crime se consumou". A Reforma Penal de 1984 (Lei nº 7.209/1984) deu à matéria a seguinte redação: "Art. 110. A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço se o condenado é reincidente. § 1º. A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação, ou depois de improvido o seu recurso, regula-se pela pena aplicada. § 2º A prescrição, de que trata o parágrafo anterior, pode ter por termo inicial data anterior ao recebimento da denúncia ou da queixa".
O Código Penal vigente declara que a prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr "do dia em que o crime se consumou" (art. 111, I) e, se o curso da prescrição interrompe-se pelo recebimento da denúncia ou da queixa (art. 117, I), como aceitar este paradoxo? Os apóstolos do retrocesso jamais poderão explicar a ocorrência da interrupção de algo que não existe!
(8) Uma acusação pública
Sem desconsiderar a valiosa opinião de colegas que integram as comissões de Reforma do Código Penal e, em especial, a subcomissão da Parte Geral da qual sou relator, devo repudiar esse retrocesso com base na experiência da advocacia, da cátedra e dos livros, por 50 (cinquenta) anos. E faço, por dever de coerência e consciência, uma acusação pública contra o legislador de ocasião que, para obter dividendos políticos de uma sociedade explorada pelo sensacionalismo e pelo perverso discurso político do crime, pretende sustentar que a execrável e inconstitucional Lei nº 12.234/2010 veio para acabar com a impunidade. Omitiu-se ele, na falsidade ideológica, a indispensável omissão do Ministério Público e do Juiz para que o curso do tempo entre o fato e o recebimento da denúncia possa gerar a prescrição. Assim a "impunidade" teria a participação por cotas de três sujeitos processuais.
Sinto-me à vontade para lutar pela restauração da prescrição retroativa e muitas das propostas apresentadas pelos membros da Comissão de Direito Penal do INSTITUTO DOS ADVOGADOS BRASILEIROS. Elas traduzem as preocupações de um direito penal justo e melhor afeiçoado à condição humana, concebida, organizada e sistematizada por Hannah Arendt (1906-1975) em três aspectos: labor, trabalho e ação. O fenômeno do crime interfere em algum ou em todos eles para perturbar e desviar a fruição dos bens e valores que podem conduzir à felicidade, quando muda a representação para encenar os dramas e as tragédias de cada dia.
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1 A Subcomissão é composta por JOSÉ MUIÑOS PIÑEIRO FILHO, Desembargador em Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro; MARCELO ANDRÉ DE AZEVEDO, Professor de Direito e Promotor de Justiça (Procuradoria de Recursos Constitucionais) em Goiás; EMANUEL MESSIAS OLIVEIRA CACHO, advogado criminalista em Sergipe; RENÉ ARIEL DOTTI, advogado em Curitiba e professor titular de Direito Penal (relator).
2 O Anteprojeto de Código de Processo Penal foi elaborado pela Comissão Permanente de Direito Penal do IAB, sob a presidência de Carlos Eduardo Machado e a organização de João Carlos Castellar, Rio de Janeiro, POD Editora, 2011.
3 Projeto de Lei da Câmara dos Deputados, nº 7.987/2010, de autoria do Deputado Miro Teixeira (PDT-RJ).
4 CP, art. 97. (...) § 1º. “A internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada por perícia médica, a cessação da periculosidade . O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três anos).”
5 DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal- Parte Geral, 4ª ed., ver., atual. e ampl. com a colaboração de Alexandre Knopfholz e Gustavo Britta Scandelari, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 680; DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema penal, 1ª ed., Curitiba: Editora Lítero Técnica, 1980, distribuição nacional Editora Saraiva, 1981. ● 2ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 345.
6 É preciso salientar que o documento entregue pela Subcomissão ao Instituto dos Advogados Brasileiro foi um primeiro esboço, sujeito, obviamente, a modificações e supressões.
7 Em meu Curso de Direito Penal – Parte Geral, cit., eu sustento a manutenção da atenuante em favor do menor de 21 anos e que, em relação ao idoso, deve-se reduzir de 70 (setenta) para 60 (sessenta) anos a idade conforme a Lei nº 10.741/2003 e a lição de mestres como Alberto Silva Franco, Luiz Regis Prado e Juarez Cirino dos Santos (pág. 632). Não encontro razão para mudar de opinião.
8 “A pena unificada para atender ao limite de 30 (trinta) anos de cumprimento, determinado pelo art. 75 do Código Penal, não é considerada para a concessão de outros benefícios, como o livramento condicional ou regime mais favorável de execução”.
9 Batista, Nilo. Concurso de agentes, 3ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 205.
10 Proposta para ser especificada, no meu entender, em relação aos delitos de menor potencial ofensivo.
11 Termo de Ajuste de Conduta firmado no âmbito dos delitos contra o meio ambiente (Lei nº 6.385/1976).
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* René Ariel Dotti é advogado do Escritório Professor René Dotti e professor titular de Direito Penal, membro da Comissão de Juristas constituída pelo Senado Federal para elaborar anteprojeto de reforma do Código Penal (Relator da Parte Geral) . Corredator dos projetos que se converteram na Lei nº 7.209/1984 (nova Parte Geral) e Lei nº 7.210/1984 (Lei de Execução Penal)


Anistia ...

"A anistia, que é o olvido, a extinção, o cancelamento do passado criminal, não se retrata. Concedida, é irretirável, como é irrenunciável. Quem a recebeu, não a pode enjeitar, como quem a liberalizou, não a pode subtrair. É definitiva, perpétua, irreformável."

Rui Barbosa

TJSC - Urgência em proteger a mulher pode prescindir de inquérito policial

Por migalhas n. 2.837
A 4ª câmara Criminal do TJ/SC reformou decisão que extinguiu ação em que uma mulher solicitava a aplicação, contra o ex-companheiro, de medida protetiva prevista na lei Maria da Penha, por reiteradas ameaças. Ela pedia que o homem fosse proibido de se aproximar da família.
O juiz pôs fim ao processo sob alegação de que ele estava instruído apenas com a declaração da vítima, registro de boletim de ocorrência e representação – todos documentos unilaterais, sem o depoimento do suposto agressor. "Não cabe extinguir o procedimento de aplicação de medida protetiva em razão de estar acompanhado apenas com as declarações da vítima, uma vez que o magistrado deverá realizar audiência de justificação para colher maiores elementos de cognição", explicou o desembargador Carlos Alberto Civinski, relator da matéria.
O magistrado acrescentou que a ação está regular, uma vez que foi ouvida a ofendida, lavrado o boletim de ocorrência e tomada a termo a representação contendo o pedido. "Não possuindo a ofendida documentos para anexar ao pedido, ele é encaminhado ao magistrado assim mesmo, sem a necessidade de oitiva de testemunhas nem do agressor", garantiu.
Veja a íntegra da decisão.

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Apelação Criminal n. 2009.007861-5, de Jaraguá do Sul. Relator: Des. Substituto Carlos Alberto Civinski
PENAL. LEI MARIA DA PENHA. APELAÇÃO CRIMINAL. AÇÃO DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA. PEDIDO PARA PROIBIÇÃO DO AGRESSOR DE APROXIMAÇÃO DA VÍTIMA E SEUS FAMILIARES (ART. 22, III, A, DA LEI 11.340/2006). EXTINÇÃO DO PROCESSO. FALTA DE ELEMENTOS PARA DECIDIR. RECURSO DA OFENDIDA. PEDIDO DE REMESSA PARA A AUTORIDADE POLICIAL, A FIM DE QUE PROCEDA À DEVIDA INSTRUÇÃO. DESNECESSIDADE. OBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART. 12 DA LEI 11.340/2006. PLEITO DE REABERTURA DO PROCESSO. VIABILIDADE. EXTINÇÃO PREMATURA DA AÇÃO. CABE AO MAGISTRADO DETERMINAR A PRODUÇÃO DAS PROVAS NECESSÁRIAS (ART. 13 DO CPP E ART. 130 DO CPC). SENTENÇA REFORMADA.
- Não cabe extinguir o procedimento de aplicação de medida protetiva em razão de estar acompanhado apenas com as declarações da vítima, uma vez que o magistrado deverá realizar audiência de justificação para colher maiores elementos de cognição.
- O pedido de medidas protetivas de urgência não vem instruído como um inquérito policial, sendo desnecessária a oitiva de testemunhas ou do agressor.
- Parecer da PGJ pelo provimento do recurso para determinar o regular prosseguimento da ação, com remessa dos autos à autoridade policial.
- Recurso conhecido e parcialmente provido, apenas para determinar o regular prosseguimento da ação.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 2009.007861-5, da comarca de Jaraguá do Sul (Vara Criminal), em que é apelante D. de P. M. N., e apelada A Justiça, por seu Promotor:
A Quarta Câmara Criminal decidiu, por votação unânime, conhecer do recurso e dar-lhe parcial provimento, para determinar o regular prosseguimento da ação. Custas legais.
Participaram do julgamento, realizado nesta data, os Exmos. Srs. Des. Jorge Henrique Schaefer Martins, presidente, e Des. José Everaldo Silva.
Florianópolis, 09 de fevereiro de 2012.

Carlos Alberto Civinski
RELATOR

segunda-feira, 19 de março de 2012

Reforma do CP: leis sucessivas, concurso aparente de normas e soma de penas

Por René Ariel Dotti
A Reforma do Código Penal
Propostas para a Parte Geral (II)
(1) Disposições novas
Entre as propostas que tenho apresentado para a Subcomissão do Senado Federal, que está elaborando um Anteprojeto da Parte Geral do Código Penal1, destaco mais três delas e relativas agora à aplicação da lei penal. A primeira trata do problema das leis penais sucessivas que, no meu entender, permitem a reunião de parte da lei velha com parte da lei nova para atender às garantias constitucionais e legais da ultratividade e da retroatividade benignas. A segunda cuida do concurso aparente de normas penais cujo critério de aplicação evita a injusta e desproporcional reação punitiva por meio das regras do concurso material, do concurso formal e do crime continuado. A terceira tem o objetivo de evitar a soma de penas em função de vários atos como expressão de um mesmo fato praticado contra idêntico bem jurídico.
Embora a doutrina tenha construído há muitos anos a solução adequada para as hipóteses do concurso aparente de normas incriminadoras e do delito de ações múltiplas, o princípio da legalidade expressamente declarado na Constituição Federal e no Código Penal exige a elaboração legislativa de fórmulas racionais sintéticas para evitar a violação a outros princípios também muito caros ao bom sistema positivo: o princípio da razoabilidade e o princípio da proporcionalidade.
Segue o segundo2 texto com as sugestões dos dispositivos legais, que não têm correspondência no Código vigente, com as devidas justificações.
(2) Combinação de leis sucessivas
A proposta renumera o parágrafo único do art. 2º (lei penal no tempo)3 em § 1º e acresce o § 2º, com a seguinte redação:
Combinação de leis
Para aplicar a lei mais favorável, o juiz poderá considerar conjuntamente as normas da lei anterior e da lei posterior do que nelas transpareça como mais benigno".
Justificação
(1) A resistência clássica à fusão
É antiga a resistência em não se admitir a combinação de normas mais favoráveis das leis em confronto para se aplicar no caso concreto. Bento de Faria, transcrevendo a doutrina de Manzini4, refere que na escolha concreta das referidas leis deve a mesma recair, numa ou noutra, "considerada integral e distintamente, não sendo admissível a aplicação simultânea das disposições mais brandas de ambas, salvo quando tal for, expressamente consentido.5 O mestre italiano, louvando-se em precedentes da Corte de Cassação, reafirma em texto publicado quase trinta anos após: "La sentenza affetta da siffatto vizio sarebbe annullabile per eccesso di potere".6
Entre nós, Nélson Hungria, o notável líder intelectual do Código Penal de 1940, sustenta que não é possível entrosar os dispositivos mais favoráveis da lex nova com os da lei antiga, pois, de outro modo estaria o juiz arvorado em legislador, formando uma "terceira lei, dissonante, no seu hibridismo, de qualquer das leis em jogo"7. No mesmo sentido, Heleno Fragoso8 e Jair Leonardo Lopes9 e outros.
(2) A omissão legislativa
O Código Penal não regulou o assunto. No entanto, o Anteprojeto de 1961, publicado em 1963, elaborado pelo mestre Hungria, proibia a fusão nos termos seguintes: "Para se reconhecer qual a mais favorável, a lei posterior e a anterior devem ser consideradas separadamente, cada qual no conjunto de suas normas aplicáveis ao caso vertente" (art. 2º, § 2º). Fragoso apoiou aquele texto fundamentando-se no parágrafo único do art. 2º do Código Penal que, na época, assim dispunha: "A lei posterior, que de outro modo favorece o agente, aplica-se ao fato não definitivamente julgado e, na parte em que comina pena menos rigorosa, ainda ao fato julgado por sentença condenatória irrecorrível". E concluiu que não seria possível a utilização de parte de um todo.10
(3) O Código Penal de 1969
O Código Penal de 196911, acompanhando a tendência da época, manteve a redação do Anteprojeto, apenas substituindo a expressão "caso vertente" por "fato". O dispositivo foi conservado na Lei 6.016/1973, que alterou o CP 1969 (art. 2º, § 2º). A mesma restrição fora observada no Código Penal Tipo para a América Latina -1963/1971- (art. 8º).
(4) A rotina dos tribunais e o precedente histórico
A jurisprudência tradicional se acomodara àquela crença como se verifica pelo aresto do antigo Tribunal de Apelação do Rio de Janeiro (14/7/1943): “É ilegal e contrário aos princípios reguladores do direito intertemporal, aplicar o juiz, ao mesmo tempo, a um só fato, a lei vigente ao tempo em que foi o delito praticado e a lei posterior, retroativamente, sob pretexto de beneficiar o réu”.12
Mas um precedente histórico surgiu com o acórdão do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Norte (29/10/1942), relatado pelo Desembargador Seabra Fagundes, aplicando simultaneamente a Consolidação das Leis Penais e o novo Código Penal, porque ambas as disposições beneficiavam o réu.13 Aquela pioneira e judiciosa orientação vingou na 1ª Conferência de Desembargadores, reunida no Rio de Janeiro (1943) para discutir o novo Código Penal (Dec.-lei 2.848, de 7/12/1940).
(5) A revisão de um mito
Um critério evolutivo tem sido consagrado por doutrinadores e os juízes que admitem, sem mais reservas, a combinação de leis sucessivas sempre que a fusão possa beneficiar o réu. Merecem destaque as opiniões de Bruno14, J.F. Marques15, Garcia16, Noronha17, Toledo18, Delmanto19, Damásio20, Bitencourt21, entre outros, com destaque para Silva Franco que analisa minuciosamente as posições em conflito para concluir, na esteira do pensamento de Cuello Contreras, citado por Antonio García-Pablos de Molina, pela "plena validade jurídica da composição das duas leis, a anterior e a posterior, para efeito de extrair-se o conteúdo mais benigno de uma e de outra".22
A lição de Prado é lúcida e bem fundamentada: "Para a determinação da lei mais favorável, deve-se realizar um exame cuidadoso do efeito da aplicação das leis – anterior e posterior-, e utilizar-se da que se apresente, in concreto, como a mais benigna ao réu. Acentua-se que esse caráter deve ser considerado em relação ao agente e à situação judicial concreta em que se encontre. Dessa maneira, uma lei pode favorecê-lo, pela diferente configuração do delito – crime ou contravenção, elementos constitutivos, acidentais; pela diferente configuração de suas formas – tentativa, participação, reincidência; pela diferente determinação da gravidade da lesão jurídica; pela diferente determinação das condições positivas ou negativas de punibilidade; pela diferente determinação da espécie e duração da pena e dos efeitos penais. Também para a lei intermediária – em vigor depois da prática do fato e revogada antes de seu julgamento final – permanece válido o postulado da retroatividade da lex mitior e da não retroatividade da lex gravior".23
Zafaroni/Batista também consideram razoável essa orientação, com a seguinte ponderação:
"Parece que a única objeção lógica oponível à combinação de leis, que outorgaria consistência ao argumento tradicional da aplicação de lei inexistente, residiria na fissura de dispositivos legais incindíveis, organicamente unitários , preocupando-se a Corte Suprema com que sejam 'separáveis as partes das normas em conflito'24 e a doutrina com a aplicação do 'preceito por inteiro'.25 Ressalvada, portanto, a hipótese em que a aplicação complementar dos textos legais concorrentes no tempo implique desvirtuar algum dos dispositivos operados, pela abusiva subtração de cláusula que condicionaria sua eficácia (quando, sim, poder-se-ia falar de uma lei inexistente), cabe admitir no direito brasileiro a combinação de leis no procedimento para reconhecer a lei mais benigna".26
No precedente relatado pelo Ministro Marco Aurélio, o Supremo Tribunal Federal, decidiu favoravelmente à aplicação das normas "do que nelas transpareça como mais benigno".
(6) Outro paradigma relevante
Em acórdão muito bem fundamentado o Desembargador Oto Sponholz, do Tribunal de Justiça do Paraná, assentou que diante do entendimento proferido pelo Supremo Tribunal Federal, "bem como nas lições doutrinárias mais modernas, pode o juiz tomar os preceitos ou os critérios mais favoráveis da lei anterior e, ao mesmo tempo, os da lei nova, combiná-los e aplicá-los ao caso concreto, de modo a extrair o máximo de benefício resultante da aplicação conjunta das leis (normas) sucessivas".27
(7) O endereço da solução legislativa
A solução para a controvérsia sobre a combinação das leis sucessivas tem um endereço legislativo certo: é no quadro das disposições constitucionais que consagram dois princípios fundamentais da aplicação da lei penal, quais sejam: a irretroatividade da lei mais grave e a retroatividade da lei mais benigna.
A Reforma Penal, determinada pela Lei 7.209/1984, ao dar nova redação do parág. ún. do art. 2º do Código Penal, levou em consideração a mudança do texto constitucional (ocorrida com as Cartas de 1946, 1967 e 1969), como se verifica pela Exposição de Motivos da nova Parte Geral, resguardando a aplicação da lex mitior de qualquer caráter restritivo, no tocante ao crime e à pena (item 9).
(8) A orientação constitucional-legal
Nos dias correntes e diante da clareza da lei fundamental e do Código Penal, que tornam obrigatória a retroatividade da lei mais benéfica – e, por via de consequência, inaplicável a lex gravior aos fatos praticados antes de sua vigência – não mais se questiona a possibilidade do juiz fazer a integração entre a lei velha e a lei nova. Não há mais clima propício para se resistir ao imperativo da fusão das normas penais que sejam mais benignas ao réu. Contra a antiga superstição e a preconceituosa exegese opõe-se o princípio de garantia individual da retroatividade da lei mais favorável (CF art. 5.º, XL), que não se detém mesmo diante da res judicata (CP art. 2.º, § 2.º). E para tanto o magistrado nada mais faz senão aplicar o direito positivo em cada fato submetido à sua jurisdição. Não está, com isso, "criando" uma nova lei.28
Concurso aparente de normas
§ 3º "Quando a um mesmo fato podem ser aplicadas duas ou mais normas penais, aplica-se uma só em atenção aos seguintes critérios: a) a norma especial exclui a norma penal; b) a norma relativa a crime que passa a ser elemento constitutivo ou qualificativo de outro, é excluída pela norma atinente a este; c) a norma incriminadora de um fato que é meio necessário ou normal fase de preparação ou execução de outro crime, é excluída pela norma a este relativa".
Justificação
(9) O Anteprojeto Hungria
A proposta tem origem no Anteprojeto Hungria, Parte Geral, publicado na Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal, n. 1, de abr/jun de 1963, p. 169 e s. Os dispositivos transcritos estão nas páginas 169/170.
O critério da letra b tem sido adotado pela jurisprudência. A propósito, o verbete 17: "Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido".
(10) Conforme o meu Curso de Direito Penal- Parte Geral29, há um concurso aparente de normas penais, que sugere a existência de um concurso de infrações penais, quando algumas normas estão umas para com as outras em relação de hierarquia, no sentido precisamente de que a aplicação de algumas delas exclui, sob certas circunstâncias, a possibilidade de eficácia cumulativa de outras. De onde resulta que a pluralidade de tipos que se podem considerar preenchidos quando se considera, isoladamente, cada uma das normas incriminadoras, vem no fim das contas em muitos casos, vistas tais relações de mútua exclusão e subordinação, a mostrar-se inexistente30. Existe, em tais casos um conflito aparente de normas penais incriminadoras que se resolve com a aplicação de somente uma delas e exclusão das demais, atendendo-se a critérios lógicos e de valoração jurídica do fato.
Crime de conteúdo variado
§ 4º A norma penal que prevê vários fatos, alternativamente, como modalidades de um mesmo crime, só é aplicável uma vez, ainda quando tais fatos são praticados, sucessivamente, pelo mesmo agente.
Justificação
(11) Uma regra indispensável
Uma grande parte das normas incriminadoras contém mais de um verbo indicativo da conduta do agente. O tipo pode ser preenchido através de várias formas de ação ou omissão. Podem ser referidos como exemplos no CP a usurpação, o dano, a receptação, a falsificação de documento público ou privado, a falsidade ideológica e a receptação (arts. 161, 163, 180, 297, 298 e 299). Nas leis especiais, pode ser mencionado como paradigma o crime de tráfico ilícito de drogas previsto no art. 33 da Lei 11.343, de 23.08.2006, que tem uma variedade de comportamentos típicos, tais como importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, ter em depósito, transportar (...) (...) entregar a consumo ou fornecer droga ainda que gratuitamente, em autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.31
A regra proposta é indispensável para efetivar o princípio da razoabilidade e garantir o autor dos vários atos ofensivos ao mesmo bem jurídico contra a eventual punição por um concurso de crimes.
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1 A Subcomissão é composta por JOSÉ MUIÑOS PIÑEIRO FILHO, Desembargador em Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro; MARCELO ANDRÉ DE AZEVEDO, Professor de Direito e Promotor de Justiça (Procuradoria de Recursos Constitucionais) em Goiás; EMANUEL MESSIAS OLIVEIRA CACHO, advogado criminalista em Sergipe e RENÉ ARIEL DOTTI, advogado e professor titular de Direito Penal (relator). A Comissão Geral (Parte Geral, Parte Especial e Leis extravagantes) é coordenada pelo Ministro Gilson Dipp (STJ). O relator-geral para as subcomissões é o Procurador Regional da República, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves.
2 O artigo inicial "Nova definição legal do dolo eventual", foi publicado na edição 8 do corrente mês neste portal jurídico do Migalhas.
3 CP, art. 2º. "Ninguém pode ser punido por fato que a lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória."
4 Trattato di diritto penale italiano, ed. de 1933, t. I, p. 332, n. 8.
5 BENTO DE FARIA, Antonio. Aplicação e retroatividade da lei, Rio de Janeiro. A . Coelho Branco Filho, Editor, 1934, p. 42/43.
6 MANZINI, Vincenzo. Trattato di diritto penale italiano, Torino: UTET, 1961, vol. 1, p. 361.
7 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 4ª ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, v. 1, T. I, p. 112.
8 Lições de Direito Penal – Parte Geral, Rio de Janeiro: Forense, 7ª ed., p. 107.
9 Curso de Direito Penal – Parte Geral, São Paulo: RT, 2ª ed., 1996, p. 102
10 FRAGOSO, Heleno Claudio. "A reforma da legislação penal - I", em Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal (RBCDP), Guanabara: ed. Universidade do Estado da Guanabara, 1963, n. 2, p. 56.
11 O Dec.-lei 1.004, de 21/10/1969, alterado pela Lei n. 6.016, de 31/12/1973, foi revogado pela Lei 6.578, de 11/10/1978. O CP 1969 nunca entrou em vigor e caracterizou a vacatio legis mais duradoura da história legislativo-penal.
12 Em ALVES DA SILVA, Valentim. Repertório de jurisprudência do Código Penal, São Paulo: Max Limonad, vol. 1º, p. 38. Idem, Tribunal de Apelação de Santa Catarina, em 10.091943. (Ob. cit. p. 41).
13 Acórdão de 29.10.1942, na Apel. Crim, nº 2.342, de Ceará-Mirim, Revista do TA do Rio Grande do Norte, vol. 3, p. 161, em Valentim Alves da Silva, ob. cit., 1º vol., p. 40.
14 BRUNO, Aníbal. Direito Penal- Parte Geral, Rio de Janeiro: Forense, 1967, t. 1º, p. 270.
15 MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal, São Paulo: Saraiva, 1964, 2ª ed., vol. 1º, p. 210/211.
16 GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal, São Paulo: Max Limonad, 4ª ed., 1959, vol. 1, t. I, p. 148.
17 MAGALHÃES NORONHA, Edgard. Direito Penal, São Paulo: Saraiva, 1985, atualizado por Camargo Aranha, vol. 1, p. 89/90.
18 ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios básicos de Direito Penal, São Paulo: Saraiva, 5ª ed., 1994, p. 36/39.
19 DELMANTO, Celso et alii. Código Penal Comentado, Rio de Janeiro: Renovar, 8ª ed., 2010. "Estando o juiz obrigado a aplicar a lei que mais favoreça, de qualquer modo, o agente, e podendo escolher entre uma norma e outra, não há razão para impedir-se a combinação das duas, como forma de integração necessária à obrigatória aplicação da lei mais favorável" (p. 85).
20 JESUS, Damásio de. Direito Penal- Parte Geral, 29ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, vol. 1º, p. 90/92.
21 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral, São Paulo: Saraiva, 11ª ed., 2007, p. 168.
22 SILVA FRANCO, Alberto. Código Penal e sua interpretação: doutrina e jurisprudência, coordenação Alberto Silva Franco e Rui Stoco, 8ª ed., São Paulo: Editora Revista os Tribunais, p. 66/67. (Os grifos são meus).
23 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro- Parte Geral, 10ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 198. Em notas de rodapé são referidos como apoio: LISZT, JESCHECK, FIORE, MAURACH, PAGLIARO e MAGGIORE. (Os grifos são do original).
24 Nota de rodapé, n. 65: STF, ministro Marco Aurélio, HC 69.033-5.
25 Nota de rodapé, n. 66: MESTIERI, João, Manual de Direito Penal, Rio, 1999, ed. Forense, p. 73.
26 ZAFFARONI, E. Raúl / BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal brasileiro – Teoria Geral do Direito Penal, Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 215. (Os grifos são meus).
27 1ª Câm. Crim., Acórdão 21238, processo 0383559-0/01, Embargos de Declaração Crime, j. em 21/6/2007, publ. 3/8/2007, unânime. Acompanharam o relator os juízes Mário Helton Jorge e Luiz Osório Panza.
28 DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral, 3ª ed., ver., atual. e ampl. colaboração de Alexandre Knopfholz e Gustavo Britta Scandelari, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 353.
29 DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 4ª ed., rev., atual. e ampl. com a colaboração de Alexandre Knopfholz e Gustavo Britta Scandelari, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 372.
30 CORREIA, Eduardo. Direito Criminal, Coimbra: Livraria Almedina, 1971, vol. II, p. 204.
31 Dotti, René Ariel. Ob. cit., p. 465.

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* René Ariel Dotti é advogado do Escritório Professor René Dotti e professor titular de Direito Penal, membro da Comissão de Juristas constituída pelo Senado Federal para elaborar anteprojeto de reforma do Código Penal (Relator da Parte Geral). Corredator dos projetos que se converteram na Lei nº 7.209/1984 (nova Parte Geral do CP) e Lei nº 7.210/1984 (Lei de Execução Penal).


TJ/RJ autoriza interrupção de gravidez de feto anencéfalo

Por migalhas n. 2.833
Os desembargadores da 2ª câmara Criminal do TJ/RJ, por unanimidade, garantiram a uma jovem de 25 anos o direito de interromper sua gravidez de feto portador de anencefalia. O HC preventivo foi impetrado pelo defensor público Nilsomaro de Souza Rodrigues, em face do juízo da 4ª vara Criminal de Duque de Caxias. A câmara determinou a expedição imediata de alvará para a realização do procedimento médico necessário, de acordo com o pedido formulado na ação.
O desembargador José Muiños Piñeiro Filho, relator, disse na decisão que o fato em questão trata-se antes de tudo de um problema de saúde pública, e não apenas de um problema jurídico. Ele fez críticas à omissão estatal em tornar efetivo o direito social à saúde, garantido pela CF/88, e alertou que as reiteradas negativas de autorização para a interrupção da gestação ou a demora do Judiciário em analisar os pedidos podem culminar com a realização do procedimento em clínicas clandestinas, resultando em alta taxa de morbidade materna.
Segundo o magistrado, não é possível se omitir diante de problema grave como o da jovem grávida: "O Estado brasileiro destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, o bem-estar, o desenvolvimento e a Justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, exatamente como disposto no Preâmbulo da Constituição, não pode se acovardar e, mais uma vez, se omitir diante de tal realidade".
Para o magistrado, "a ausência de norma escrita não é, e jamais será óbice a que se preste a jurisdição, especialmente diante de todas as normas constitucionais".
Segundo a decisão, a literatura médica considera a anencefalia uma malformação tão grave que a qualifica como "monstruosidade caracterizada pela ausência de cérebro e da medula. Quando chega a nascer, pouco lembra a aparência de um ser humano, tem apenas traços humanóides". Mas o desembargador lembra que, como alguns sobrevivem por dias, a controvérsia se instala e há quem impetre ação para sustentar a viabilidade da vida.
Conforme a decisão, a ação constitucional do HC foi aceita neste caso, pois ficou caracterizado risco à liberdade física da paciente e violação ao princípio da dignidade humana. O relator afirmou ainda que a decisão também encontra respaldo na liminar concedida pelo Pleno do STF no tocante à matéria para suspender processos dessa natureza.

quinta-feira, 15 de março de 2012

A Corrupção e o Código Penal (3ª Parte)

Publicado no jornal "O Correio do Povo", quinta-feira, 15 de março de 2012, edição 6.897, p. 3.

Para fechar com chave de ouro.
Espero ter conseguido mudar um pouco a consciência de nossa sociedade.


quarta-feira, 14 de março de 2012

Enquete: É possível que ocorra na prática a figura criminosa conhecida por homicídio simples hediondo, nos termos do art. 1º, inciso I, da Lei 8.072/90???

Texto base: A IMPOSSÍVEL FIGURA DO HOMICÍDIO HEDIONDO SIMPLES E A INAPLICABILIDADE DAS NORMAS PREVISTAS NA LEI 8.072/90 - Prof. João José Leal (Publicado na Revista Jurídica nº 323, p. 89).

- Atividade realizada com acadêmicos de DP III da Católica de SC.
- Comentários para serem formulados por equipes de até 3 acadêmicos.
- Identificar cada um dos componentes, logo no início do comentário, para fins de reconhecimento da pontuação pertinente a atividade.

A Corrupção e o Código Penal (2ª Parte)

Publicado no jornal "O Correio do Povo",  quarta-feira, 14 de março de 2012, edição 6.896, p. 3.

Continuação sobre o tema, agora com abordagem especial no aspecto conceitual da palavra.


terça-feira, 13 de março de 2012

A Corrupção e o Código Penal (1ª Parte)

Publicado no Jornal "O Correio do Povo", terça-feira, 13 de março de 2012, edição n. 6.895, p. 3.

Uma breve análise histórica da corrupção, sua presença junto ao Código Penal, bem como uma crítica a sociedade brasileira.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Enquete: QUAL A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL NUM ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO?

Obra indicada: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. vol. 1. 14 ed. São Paulo: Saraiva 2009.


Atividade desenvolvida com os Acadêmicos de Direito Penal I - Católica de SC.

sexta-feira, 9 de março de 2012

STJ - Dias de trabalho não podem ser descontados de pena em regime aberto

Por Migalhas n. 2.830
A 6ª turma do STJ negou HC a condenado em regime aberto que pretendia descontar da pena os dias de trabalho. Pelo entendimento da turma, isso só pode ser feito quando o condenado cumpre pena em regime fechado ou semiaberto.
A defesa alegou constrangimento ilegal. Para ela, o princípio ideológico da lei e do direito penal, de que a pena tem função de reintegrar o indivíduo à sociedade, garantiria a remição da pena de condenados em regime aberto. A defesa afirmou ainda que a LEP é omissa aos apenados neste regime, o que atrairia a interpretação por analogia em favor do réu.
A ministra Maria Thereza de Assis Moura, relatora, entendeu que a remição de pena pelo trabalho aos condenados em regime aberto foge da previsão da lei. Conforme a relatora, a LEP determina que o desconto de dias da pena por trabalho ou estudo poderá ser feito para condenados em regime fechado ou semiaberto.
Ela apontou ainda que a remição da pena em regime aberto é possível por estudo de acordo com a lei 12.433/11, que modificou a LEP. Porém, observou que no caso o pedido foi de remição por trabalho, e votou pela denegação da ordem.
Veja a íntegra da decisão.
___________
HABEAS CORPUS Nº 189.914 - RS (2010⁄0206106-9)
RELATORA: MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA
IMPETRANTE: C. DE O. C. - DEFENSORA PÚBLICA
IMPETRADO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PACIENTE: E. S. S.
EMENTA
HABEAS CORPUS. REMIÇÃO. POSSIBILIDADE A CONDENADO NO REGIME ABERTO. PREVISÃO LEGAL EM SENTIDO CONTRÁRIO. ORDEM DENEGADA.
1. Segundo orientação desta Corte, bem assim do Supremo Tribunal Federal, o art. 126 da LEP prevê a remição da pena pelo trabalho somente aos apenados que se encontram nos regimes fechado ou semiaberto, situação mantida com a entrada em vigor da Lei 12.433⁄2011.
2. Ordem denegada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça: "A Turma, por unanimidade, denegou a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora." Os Srs. Ministros Sebastião Reis Júnior e Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ⁄RS) votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Og Fernandes.
Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Brasília, 14 de fevereiro de 2012(Data do Julgamento)
Ministra Maria Thereza de Assis Moura
Relatora

Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI151411,101048-Dias+de+trabalho+nao+podem+ser+descontados+de+pena+em+regime+aberto